Com passagens por clubes do RN e até do exterior, os ex-atletas Carioca, Joelan, Kelton e Tinho recomeçam a vida após largar o futebol e destacam nova profissão
Por Jocaff Souza
Natal
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Decepção e recomeço profissional
Vida após a bola
Ídolo alvirrubro
Mercado inovador
O sonho de quase todo garoto é correr atrás de uma bola e jogar futebol. As barreiras na profissão podem surgir, sejam por lesões ou por entraves com empresários, que encurtam o período de sucesso e glória de um jogador. Para quem não tem planejamento, o destino é o esquecimento e a pobreza. Para outros, o fim da carreira é a chance de recomeçar e saber que existe ainda mais vida profissional depois de pendurar as chuteiras. Essa é a história de quatro ex-jogadores que tiveram passagens pelo principais clubes do Rio Grande do Norte, além de atuarem por outros times do Brasil e até do exterior. Os ex-atletas Carioca, Joelan, Kelton e Tinho trilharam caminhos distintos no esporte, mas se encontraram em uma profissão que tem como objetivo a preservação do bem estar e do cuidado com a população: a de vigilante.
Os quatro atuam no serviço de segurança privada e prestam serviço em hospitais, escolas e empresas de comunicação. Para entrar na profissão, precisaram se especializar na área, com um estudo bem diferente dos tempos de jogador. Se antes trabalhava com chuteiras e bolas, a nova fase é totalmente diferente e o grupo passou a se debruçar sobre livros e apostilas técnicas para se qualificar. O alvo era o diploma de segurança privado, com um detalhe: a permissão para portar uma arma de fogo.
RN Segurança FC - Kelton, Joelan, Tinho e Carioca (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
Kelton, Joelan, Tinho e Carioca: ex-jogadores trabalham como vigilantes (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
- Nós temos porte para arma, sendo que na unidade onde trabalho não é necessário. Eu utilizei o armamento apenas no treinamento. A cada dois anos, nós somos submetidos a uma reciclagem e, nesses treinamentos, também usamos armas de fogo, tanto pela prova teórica como prática - explica o ex-goleiro Tinho, que conquistou títulos estaduais como jogador pelo ABC, América-RN, Potiguar de Mossoró, Nacional de Patos e o acesso do Alecrim à Série C, em 2009.
A cada dois anos, nós somos submetidos a uma reciclagem, e nesses treinamentos, também usamos armas de fogo"
Tinho, ex-jogador e que trabalha como segurança privado
Aos 39 anos, Tinho é segurança de um hospital em Natal. A mudança de vida aconteceu por influência de um amigo, o ex-zagueiro do ABC, Romildo, que também é funcionário da mesma empresa de segurança que atuam os outros ex-atletas. Tinho exalta a atual profissão por trabalhar em contato direto com o público, assim como acontecia nos estádios. Por quase 20 anos, defendeu as cores de clubes do Rio Grande do Norte, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Ceará, Piauí e Amazonas, onde encerrou a carreira no São Raimundo-AM, em 2012.
- Eu me identifico com a profissão porque a gente se identifica muito com o público, por ser do futebol. Quem trabalhou jogando, dando alegria aos torcedores, está acostumado com as pessoas. No local onde eu trabalho, que é um hospital, é diretamente com o público, recepcionando e auxiliando no atendimento. Isso é uma coisa que eu trouxe do futebol, essa cordialidade.
O sorriso tem que estar aberto, seja com o "bom dia, boa tarde ou boa noite" - conta.
Romildo e Tinho, ex-jogadores do ABC (Foto: Arquivo Pessoal)
Romildo e Tinho: amizade desde os tempos em que jogaram no ABC (Foto: Arquivo Pessoal)
Tinho ressalta o companheirismo vivenciado durante o período em que foi jogador de futebol e a amizade que construiu com os ex-companheiros de clubes. Para minimizar a saudade e a distância dos familiares, levantada como a principal ausência na carreira de um jogador, o ex-goleiro recorda que as amizades serviam para esquecer os problemas.
- Eu aprendi o companheirismo, ajudar o próximo. Isso no futebol se aprende bastante, o lado humano do esporte. Você passa por várias situações, com vários treinadores com filosofias de trabalho, cada atleta com o seu pensamento, de culturas diferentes. Eu sou feliz com o que eu fiz. Não ganhei dinheiro, mas fiz muitas amizades no futebol. Até hoje, eu prezo por essas amizades e muitos amigos ainda me ligam de outros estados para saber como estou e o que estou fazendo. As amizades ficaram, não só no futebol, mas fora dele também, tanto no Rio Grande do Norte como nos outros estados em que passei, continuam as mesmas amizades - exalta.
Decepção e recomeço profissional
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Jogar na Europa e ganhar muito dinheiro. Com apenas 17 anos, essa foi a realidade do ex-atacante Kelton, que chegou a jogar na equipe principal do Celta de Vigo, clube da primeira divisão da Espanha, mas sofreu fora de campo ao ser enrolado por um empresário. As lembranças daquele período trazem um sofrimento longe da família e dos amigos. Kelton dos Santos Silva começou no futsal e, após se destacar em competições estudantis, recebeu uma proposta de um empresário para ir jogar no América-MG, em 2005. Foi a primeira experiência fora de casa. A boa estatura e os gols despertaram o interesse do Cruzeiro. Seis meses depois, o potiguar estava treinando com elenco principal na Toca da Raposa, sob os olhares atentos do treinador Paulo César Gusmão. A ascensão foi tamanha que Kelton partiu para a Europa.
No entanto, na medida em que a empolgação aumentava, a queda se preparava de forma drástica. Induzido a assinar uma documentação por um empresário que conduziu a negociação do atacante com um clube europeu, Kelton teve o passe preso a um grupo de empresários.
Com um contrato supervalorizado, que girava em torno de 500 mil euros, acabou perdendo espaço e interesse dos grandes clubes da Espanha. Sem visto trabalhista e sem chance de permanecer na Europa, retornou ao Brasil três meses depois, mas acabou entrando em outra enrascada.
RN Segurança FC - Kelton e Tinho (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
Kelton (esq.) sofreu com empresários e com a "trairagem" do futebol (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
Por quase três anos e meio, Kelton recebia um salário de apenas R$ 500 do América-MG. Morando no alojamento do clube, o jogador passou por dificuldades com os dirigentes, mas era amparado pelos companheiros de grupo, como o atacante Euller. Conseguiu sair do time mineiro e fez uma última tentativa no interior de São Paulo, mas sofreu uma séria lesão no tornozelo, que foi decisiva para que largasse o futebol. De volta a Natal há cinco anos, recebeu o convite de alguns amigos para trabalhar na área de segurança e, desde então, se especializa para atuar em outros setores ligados à profissão.
- Eu não trocaria mais a empresa de segurança por outro clube de futebol. O futebol acabou, e mesmo se houvesse outra chance, eu não iria. O que eu sofri no futebol vai ficar de lição para o resto da minha vida.
A trairagem, a falta de respeito com os atletas da base que buscam o seu espaço. A minha situação foi interrompida por conta de terceiros. De forma inocente, o cara que me empresariava estipulou meu passe em 500 mil euros, isso em 2006. O Celta não tinha condições de pagar e voltei ao Brasil, sem clube e sem dinheiro. Sem assistência, assinei um documento com o América-MG com um período de quatro anos e fiquei recebendo apenas R$ 500. Foram anos de sofrimento até me libertar daquilo que me atormentava. Quando vim para Natal no intuito de estudar e trabalhar, eu sempre pensei que não iria parar de viver por conta daquilo. Fui estudar, me qualificar e trabalhar. Faz cinco anos que estou na empresa, saí e depois voltei, e sempre trabalhando e estudando. Sou muito feliz em trabalhar na área de segurança - revela Kelton.
Vida após a bola
Com 30 anos, Joelan é mais um que abandonou o futebol por conta de uma lesão.
Com identificação com o América-RN, por ter participado da campanha do acesso à Série B, em 2005, afirma até os dias atuais ter "sangue potiguar". Em 2012, o catarinense atuava pelo Murici, clube de Alagoas, e acabou rompendo o ligamento cruzado anterior do joelho direito. Por ter iniciado a carreira no Mecão, construiu boas amizades e uma delas, com o médico Maeterlinck Rêgo, foi importante para a sua recuperação clínica.
RN Segurança FC - Joelan (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
Joelan abandonou o futebol em 2013, após lesões no joelho e musculares .
Um ano depois, ainda buscou outras chances em clubes de menor expressão, como o Palmeira de Goianinha, mas as lesões voltaram e os problemas musculares o fizeram desistir do esporte. Com pouco dinheiro e uma família para sustentar, Joelan recebeu a ajuda de alguns amigos e a indicação para um curso de segurança privada.
A disposição no emprego e o bom desempenho que alcançou na profissão garantem a Joelan uma figura de destaque entre os funcionários. A necessidade de trabalhar com arma de fogo, obrigatória para a profissão, não assusta o vigilante, que afirma nunca ter usado em serviço.
- O futebol tem seus lados bons, com toda aquela mordomia, mas também tem esse lado ruim de ver pessoas esquecidas e passando por dificuldades. Eu comecei nesse setor (segurança privada) devido ao vínculo de amizades que a gente acaba criando no futebol. Eu sabia que alguns amigos estavam trabalhando na área e, através deles, eu conheci o Fernando e o Sérgio (Leocádio), que já viviam no futebol e têm amizades como muitas pessoas. Me indicaram para fazer um curso na área de segurança e acabou dando certo. Hoje, tenho treinamento especializado, com porte para trabalhar com arma de fogo, mas, graças a Deus, nunca precisei usar - comenta Joelan.
Após largar o futebol, Joelan reencontrou em Natal um antigo treinador, Oliveira Canindé, em 2014, quando este trabalhou no América-RN e conquistou o campeonato estadual. O encontro foi rápido, mas as lembranças do período em que trabalharam juntos no Potiguar de Mossoró, em 2006, gera um cômico saudosismo.
RN Segurança FC - Carioca e Joelan (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
Carioca e Joelan relembram histórias do tempo em que jogaram no Potiguar de Mossoró, em 2006 (Foto: Jocaff Souza)
- Um fato curioso comigo foi em 2006, quando estava no Potiguar de Mossoró. O técnico era o Oliveira Canindé, que passou recentemente pelo América-RN. Num amistoso contra o Baraúnas, eu marquei um gol, mas ele chegou no treino seguinte dizendo que gostava de volante que 'metesse o pau'. Quando o treino começou, eu fui para os reservas e fiquei na minha. Com a bola em jogo, eu dei uma juntada num meia que estava surgindo no time, e o cara levantou os dois pés e voou com a pancada. O treinador pegou o colete do outro cara que ele havia escolhido como titular e me deu de volta - conta.
Ídolo alvirrubro
"Eu ganho meu dinheiro com o que gosto de fazer".
A vida de segurança rende além de um bom vencimento, a oportunidade de conviver com pessoas de outras áreas. Campeão do Nordeste com o América-RN, em 1998, e um dos ídolos da história alvirrubra, o ex-jogador Carioca trabalha atualmente como vigilante em um hospital de Natal. A habilidade que tinha em campo com os pés foi trocada pela dedicação ao serviço de segurança. O ofício é simples, mas permite ao ex-jogador trocar experiências de vida com os pacientes.
- Sou muito feliz por tudo que fiz no esporte. Hoje, eu ganho meu dinheiro com o que gosto de fazer. Não me arrependo de nada. Era bom demais, principalmente naquela época em que estávamos na primeira divisão (1997 e 1998), e pegar esses times grandes e meter sufoco naqueles caras. Foi bom, e tudo que eu fiz eu me considero satisfeito. Hoje, sou feliz com o meu trabalho e com o que posso oferecer ao público com que trabalho. Sou segurança e trabalho na vigilância de um hospital.
O atendimento com as pessoas e o jeito de conversar com elas são essenciais para o meu trabalho. É o que garante a minha satisfação na profissão - comenta Carioca, que encerrou a carreira de jogador aos 37 anos, no Potyguar de Currais Novos.
Carioca - ídolo do América-RN (Foto: Reprodução/Inter TV Cabugi)
Carioca trabalha como vigilante em um hospital de Natal (Foto: Reprodução/Inter TV Cabugi)
Para ingressar na profissão de segurança, assim como os demais, foi necessária muita dedicação. Outro ponto destacado por Carioca foi a boa relação com alguns amantes do futebol.
- Antigamente, a galera era mais unida e essas amizades ficaram até hoje. Dessa união, você consegue boas coisas. Por conta disso, eu conheci boas pessoas na área, fiz o curso de segurança, me especializei, e consegui a oportunidade de trabalhar numa empresa em que os patrões já me conheciam dos tempos de jogador. Daí, a conversa ficou mais fácil e a chance surgiu. Eu agradeço todos os dias pela oportunidade. Eu tenho muita amizade e companheirismo pelos meus amigos - festeja Carioca.
Mercado inovador.
Os responsáveis pelas contratações dos ex-jogadores são o empresário Fernando Leocádio e seu pai, Sérgio Leocádio. Pai e filho são apaixonados por futebol e observaram que os ex-jogadores são um bom investimento para a empresa. Os dois fundaram a empresa Natal Vigilância há seis anos e, desde então, possuem mais de 20 ex-atletas como colaboradores. O primeiro deles foi o ex-zagueiro Romildo, que teve grande passagem pelo ABC. Em seguida, foram chegando à empresa o ex-goleiro Tinho, o ex-volante Joelan e muitos outros. A maioria dos vigilantes atua em hospitais particulares devido ao bom trato com o público.
Contudo, o serviço que destaca maior importância para a empresa é quanto à segurança da Arena das Dunas. O contrato com o consórcio que administra o estádio foi firmado antes da Copa do Mundo.
De acordo com Sérgio Leocádio, a disciplina dos ex-jogadores é o principal fator para que esse público tenha espaço nas empresas de segurança privada. O fator físico e a saúde em dia também contribuem para as contratações.
RN Segurança FC - Kelton, Joelan, Tinho e Carioca (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
Ex-jogadores de futebol se destacam como vigilantes na empresa de segurança (Foto: Jocaff Souza/GloboEsporte.com)
- Especialmente, nos surpreendeu o serviço dos ex-jogadores na desenvoltura com o trabalho. O jogador de futebol já tem o porte atlético, a boa altura, a preparação física adequada e, o mais importante, a disciplina. O trabalho com esse pessoal foi tão bem aceito na nossa empresa que nós temos mais seis ex-jogadores que estão com currículo engatilhados e estão à espera de postos para trabalho. É um pessoal mais observador, mais educado e que consegue desenvolver um trabalho mais qualificado - revela.
Para que o restante dos funcionários possam entrar em forma, a empresa criou um projeto desportivo com a prática do futebol. Aos finais de semana, os empregados que não estejam em regime de plantão são convidados para um jogo, onde o essencial é mostrar disposição para correr atrás da bola.
- Nós temos um projeto de lazer aos finais de semana que envolve o futebol. Eles (os ex-jogadores) convidam os outros vigilantes a praticarem o futebol, até como uma forma de prevenção à saúde. É um momento em que aquele vigilante que está fora do peso começa a se cuidar um pouco mais e dar valor a outros critérios para o seu trabalho - contou.
Fonte/GloboEsporte